QUAL É AFINAL O SEGREDO DO SUCESSO? "AVENIDA HOLLYWOOD"

quinta-feira, 22 de agosto de 2013



Não é "Os Sopranos" nem "Sete Palmos de Terra", mas a telenovela da Globo "Avenida Brasil" recorre com estilo e gosto às convenções e às histórias do cinema, incluindo as que a época dourada de Hollywood nos deixou. E isso faz dela a melhor série que nos últimos tempos se viu na televisão generalista.

Agora que caminha para o fim, a telenovela "Avenida Brasil" merece, sem reservas, o elogio: foi a melhor série de ficção que este ano passou na televisão portuguesa. Não há ironia nesta frase. Admita-se: talvez diga alguma coisa sobre a programação dos canais generalistas.

Já tem 40 anos a relação das telenovelas brasileiras com os espectadores portugueses. Marcaram o imaginário de várias gerações com muitos clichés, escapismo (poucas ousaram representar o trabalho), incongruências em termos de narrativa. Mas também com aforismos certeiros, expressões e diálogos delirantes e, em particular nas últimas décadas, com uma abordagem a temas delicados que enerva, quando cede a uma representação fantasiosa do outro, e que comove, quando resiste à tentação do maniqueísmo e ousa caminhos mais difíceis, mais complexos. Ainda se lembram da defesa que Eduardo Prado Coelho fez de "Laços da Família" nas páginas deste jornal?

Em "Avenida Brasil", o enredo principal anda à volta de uma vingança. Abandonada aos 11 anos pela madrasta "Carminha" numa grande lixeira, "Nina" regressa ao Rio de Janeiro e não hesitará em tornar o mundo um lugar mais odioso para fazer justiça. Como em todas as telenovelas, a trama alonga-se, sucedem-se as habituais voltas e reviravoltas e, no fim, os bons vencem os maus. Até aqui nada de novo. O que distingue "Avenida Brasil" é o modo como esta história, envolvida num formato repetido, por isso familiar, é filmada, posta em imagens.

António Pinto Ribeiro, em Dezembro do ano passado, sublinhava neste suplemento a apropriação da linguagem do cinema pela telenovela; o fotógrafo Daniel Curval no seu blogue (numfilmedegodard.blogspot.com), escrevia que "toda a gramática da linguagem cinematográfica está nesta excelente telenovela". Tinham toda a razão. Mas as afinidades não são exclusivamente formais. No Brasil, decorridos vários meses, os espectadores já se divertiam a identificar planos, sequências e cenas inspiradas em Little Miss Sunshine, Kill Bill 2, Cisne Negro, Dogville ou Carrie. Houve quem falasse em plágio, oportunismo, pastiche em série. Em telenovela pós-moderna.

Outras referências mais subtis deslizam da trama principal para os sub-enredos. E não são apenas técnicas ou imagens associadas ao film noir ou aothriller (porventura as mais utilizadas em Avenida Brasil). Para iniciar e concluir o seu plano de vingança, "Nina" infiltra-se, disfarçada de empregada, na casa de "Tufão", o marido de "Carminha" (que esta engana e rouba há anos), e aí reencontra o amor de infância (Jorginho). Exceptuando as represálias da antiga madrasta (as duas travam um combate violento), só um obstáculo se colocará entre o par agora reunido: a relação da falsa empregada com o próprio "Tufão", ex-jogador de futebol que, depois de uma carreira de sucesso, se tornou um milionário do subúrbio. 

No seu voluntarismo bondoso, "Nina" quer ajudar o antigo astro da bola a ser um homem culto, educado; aconselha-lhe livros (O Idiota e O Primo Basílio), filmes (As Noites de Cabíria, de Federico Fellini, que tem direito a uma cena deliciosa com a família do antigo futebolista), outros hábitos, outros modos. Sobretudo, procura libertá-lo da bonomia boçal que o domina e ele apaixona-se. Ora, os diálogos e as cenas que antecedem a declaração de amor do honesto marido da vilã (um dos momentos mais altos da telenovela) à jovem justiceira lembram momentos deGigi, de Vincente Minnelli, ou podiam pertencer a uma versão sexualmente invertida de My Fair Lady, de George Cukor, enquanto a caracterização física de "Nina" (cabelo curto, silhueta esguia, baixa estatura) não será estranha ao imaginário cinéfilo.

Se a comédia romântica é aflorada, a screwball comedy tem direito aos momentos mais intensos nas peripécias de "Cadinho" (o dono falido de uma empresa de investimentos) com as suas 3 mulheres, ou nas aventuras de um trio amoroso (Sueli, Roni e Leandro) que, para se manter junto, abdica do sucesso e do dinheiro. Será ridículo evocar o neo-realismo a propósito de "Avenida Brasil", curiosamente uma telenovela que se esforça por parecer "autêntica", com uma profusão de exteriores e cenas de rua, planos da lixeira ou diálogos cheios de calão (nunca se ouviu tantas vezes "merda", "vaca", "cabra", "filha da mãe" na televisão portuguesa). Afinal de contas, telenovela é espectáculo. 

Ainda assim não faltam apontamentos de um realismo que, se não desmente, pelo menos questiona a imagem orgulhosa do novo Brasil. Amigos de "Nina" e do "Jorginho" desde os tempos do "lixão", "Betânia" e "Valdo" não tiveram a sorte de ser adoptados (em Avenida Brasil, o ambiente determina os indivíduos). Trabalham num posto de gasolina e vivem numa casa pobre, modesta. Um dia, "Valdo" revolta-se contra as humilhações do patrão e dos clientes, não aguenta viver com o parco dinheiro que recebe e aceita os subornos de "Carminha". Não é malandro, não é mau carácter, tem as suas razões. Pelo menos é isso que o seu rosto, duro e amargurado, parece exprimir antes de desaparecer (numa actuação seca e curta de João Henrique Gago).

Também o casal de vilões tem os seus motivos. Assim que "Avenida Brasil" arranca, sabemos o que espera "Carminha" (Adriana Esteves) e o seu eterno amante, "Max" (Marcelo Novaes): a prisão, o castigo. Vão provavelmente morrer, ainda que sem o glamour de Bonnie & Clyde ou a sensualidade furiosa dos amantes de Duelo ao Sol, de King Vidor. Vivem marcados pela tragédia das suas famílias, pela miséria e pela fome do "lixão" (onde também cresceram) e só o dinheiro, a riqueza, o consumo, conquistados pelo crime e pelo engano, apagarão as memórias desse passado. 

"Carminha" encarna fielmente o papel da mulher fatal: desfiando promessas, montando ardis vários, ludibria e tenta sacrificar o amante. Mas os dois não simbolizam um mal absoluto, inexplicável. São pessoas que para se vingarem da vida não olham a meios (é Carminha que diz: "A vida é uma guerra: é você ou ela"). E quando se separam não o fazem sem luta (corpo a corpo), suor, saliva e lágrimas (será por isso que Avenida Brasil começa sempre às 23h ou as telenovelas brasileiras já exigem demasiado ao telespectador português?). Mencione-se o excelente trabalho da dupla que ajuda a humanizar as personagens, sem recear as convenções do melodrama.

Em "Avenida Brasil", a telenovela brasileira não só não perdeu uma das suas melhores características como tomou para si códigos, referências visuais, recursos estilísticos e narrativos que lhe eram exteriores. Ou seja: continuou a confrontar-nos com comportamentos, visões do mundo e representações da vida, mas agora recorrendo a um arquivo muito especial: aquele que o cinema clássico lhe deixou. Eis o que explica o prazer que "Avenida Brasil" trouxe a quem a viu. Um prazer antigo, quase extinto.

Fonte: Público

3 comentários:

  1. Excelente artigo e excelente novela!!

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  2. «Avenida Brasil» é uma excelente telenovela. O único ponto negativo foram os fracos núcleos secundários. A história do Roni e da Dolores, por exemplo, poderia ter sido muito melhor aproveitada. O João Emanuel Carneiro deu demasiada importância à história principal, e isso fez com que houvesse episódios mortos. Havia muitas personagens que deveriam ter tido mais destaque ou, pelo menos, uma evolução contínua ao longo da história.

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  3. Essa novela foi na minha opnião a melhor dos últimos tempos. Cada capítulo nos deixava intrigado pra ver outro e assim sucessivamente.

    muito boa mesmo!

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