Não é "Os Sopranos" nem "Sete Palmos de
Terra", mas a telenovela da Globo "Avenida Brasil" recorre
com estilo e gosto às convenções e às histórias do cinema, incluindo as que a
época dourada de Hollywood nos deixou. E isso faz dela a melhor série que nos
últimos tempos se viu na televisão generalista.
Agora que caminha para o fim, a telenovela "Avenida
Brasil" merece, sem reservas, o elogio: foi a melhor série de ficção
que este ano passou na televisão portuguesa. Não há ironia nesta
frase. Admita-se: talvez diga alguma coisa sobre a programação dos canais
generalistas.
Já tem 40 anos a relação das telenovelas brasileiras com os
espectadores portugueses. Marcaram o imaginário de várias gerações com muitos
clichés, escapismo (poucas ousaram representar o trabalho), incongruências em
termos de narrativa. Mas também com aforismos certeiros, expressões e diálogos
delirantes e, em particular nas últimas décadas, com uma abordagem a temas
delicados que enerva, quando cede a uma representação fantasiosa do outro, e
que comove, quando resiste à tentação do maniqueísmo e ousa caminhos mais
difíceis, mais complexos. Ainda se lembram da defesa que Eduardo Prado Coelho
fez de "Laços da Família" nas páginas deste jornal?
Em "Avenida Brasil", o enredo principal anda à volta
de uma vingança. Abandonada aos 11 anos pela madrasta "Carminha" numa
grande lixeira, "Nina" regressa ao Rio de Janeiro e não hesitará em
tornar o mundo um lugar mais odioso para fazer justiça. Como em todas as
telenovelas, a trama alonga-se, sucedem-se as habituais voltas e reviravoltas
e, no fim, os bons vencem os maus. Até aqui nada de novo. O que distingue
"Avenida Brasil" é o modo como esta história, envolvida num
formato repetido, por isso familiar, é filmada, posta em imagens.
António Pinto Ribeiro, em Dezembro do ano passado, sublinhava
neste suplemento a apropriação da linguagem do cinema pela telenovela; o
fotógrafo Daniel Curval no seu blogue (numfilmedegodard.blogspot.com), escrevia
que "toda a gramática da linguagem cinematográfica está nesta excelente
telenovela". Tinham toda a razão. Mas as afinidades não são exclusivamente
formais. No Brasil, decorridos vários meses, os espectadores já se divertiam a
identificar planos, sequências e cenas inspiradas em Little Miss
Sunshine, Kill Bill 2, Cisne Negro, Dogville ou Carrie.
Houve quem falasse em plágio, oportunismo, pastiche em série. Em telenovela
pós-moderna.
Outras referências mais subtis deslizam da trama principal para
os sub-enredos. E não são apenas técnicas ou imagens associadas ao film
noir ou aothriller (porventura as mais utilizadas em Avenida
Brasil). Para iniciar e concluir o seu plano de vingança, "Nina"
infiltra-se, disfarçada de empregada, na casa de "Tufão", o marido de
"Carminha" (que esta engana e rouba há anos), e aí reencontra o amor
de infância (Jorginho). Exceptuando as represálias da antiga madrasta (as duas
travam um combate violento), só um obstáculo se colocará entre o par agora
reunido: a relação da falsa empregada com o próprio "Tufão",
ex-jogador de futebol que, depois de uma carreira de sucesso, se tornou um
milionário do subúrbio.
No seu voluntarismo bondoso, "Nina" quer ajudar o
antigo astro da bola a ser um homem culto, educado; aconselha-lhe livros (O
Idiota e O Primo Basílio), filmes (As Noites de Cabíria, de Federico
Fellini, que tem direito a uma cena deliciosa com a família do antigo
futebolista), outros hábitos, outros modos. Sobretudo, procura libertá-lo da
bonomia boçal que o domina e ele apaixona-se. Ora, os diálogos e as cenas que
antecedem a declaração de amor do honesto marido da vilã (um dos momentos mais
altos da telenovela) à jovem justiceira lembram momentos deGigi, de Vincente
Minnelli, ou podiam pertencer a uma versão sexualmente invertida de My
Fair Lady, de George Cukor, enquanto a caracterização física de "Nina"
(cabelo curto, silhueta esguia, baixa estatura) não será estranha ao imaginário
cinéfilo.
Se a comédia romântica é aflorada, a screwball
comedy tem direito aos momentos mais intensos nas peripécias de
"Cadinho" (o dono falido de uma empresa de investimentos) com as suas
3 mulheres, ou nas aventuras de um trio amoroso (Sueli, Roni e Leandro) que,
para se manter junto, abdica do sucesso e do dinheiro. Será ridículo evocar o
neo-realismo a propósito de "Avenida Brasil", curiosamente uma
telenovela que se esforça por parecer "autêntica", com uma profusão
de exteriores e cenas de rua, planos da lixeira ou diálogos cheios de calão
(nunca se ouviu tantas vezes "merda", "vaca",
"cabra", "filha da mãe" na televisão portuguesa). Afinal de
contas, telenovela é espectáculo.
Ainda assim não faltam apontamentos de um realismo que, se não
desmente, pelo menos questiona a imagem orgulhosa do novo Brasil. Amigos de
"Nina" e do "Jorginho" desde os tempos do
"lixão", "Betânia" e "Valdo" não tiveram a sorte
de ser adoptados (em Avenida Brasil, o ambiente determina os indivíduos).
Trabalham num posto de gasolina e vivem numa casa pobre, modesta. Um dia,
"Valdo" revolta-se contra as humilhações do patrão e dos clientes,
não aguenta viver com o parco dinheiro que recebe e aceita os subornos de
"Carminha". Não é malandro, não é mau carácter, tem as suas razões.
Pelo menos é isso que o seu rosto, duro e amargurado, parece exprimir antes de
desaparecer (numa actuação seca e curta de João Henrique Gago).
Também o casal de vilões tem os seus motivos. Assim que
"Avenida Brasil" arranca, sabemos o que espera
"Carminha" (Adriana Esteves) e o seu eterno amante, "Max"
(Marcelo Novaes): a prisão, o castigo. Vão provavelmente morrer, ainda que sem
o glamour de Bonnie & Clyde ou a sensualidade furiosa dos amantes
de Duelo ao Sol, de King Vidor. Vivem marcados pela tragédia das suas
famílias, pela miséria e pela fome do "lixão" (onde também cresceram)
e só o dinheiro, a riqueza, o consumo, conquistados pelo crime e pelo engano,
apagarão as memórias desse passado.
"Carminha" encarna fielmente o papel da mulher fatal:
desfiando promessas, montando ardis vários, ludibria e tenta sacrificar o
amante. Mas os dois não simbolizam um mal absoluto, inexplicável. São pessoas
que para se vingarem da vida não olham a meios (é Carminha que diz: "A
vida é uma guerra: é você ou ela"). E quando se separam não o fazem sem
luta (corpo a corpo), suor, saliva e lágrimas (será por isso que Avenida
Brasil começa sempre às 23h ou as telenovelas brasileiras já exigem
demasiado ao telespectador português?). Mencione-se o excelente trabalho da dupla
que ajuda a humanizar as personagens, sem recear as convenções do melodrama.
Em "Avenida Brasil", a telenovela brasileira não só
não perdeu uma das suas melhores características como tomou para si códigos,
referências visuais, recursos estilísticos e narrativos que lhe eram
exteriores. Ou seja: continuou a confrontar-nos com comportamentos, visões do
mundo e representações da vida, mas agora recorrendo a um arquivo muito
especial: aquele que o cinema clássico lhe deixou. Eis o que explica o prazer
que "Avenida Brasil" trouxe a quem a viu. Um prazer antigo,
quase extinto.
Fonte: Público
Excelente artigo e excelente novela!!
ResponderEliminar«Avenida Brasil» é uma excelente telenovela. O único ponto negativo foram os fracos núcleos secundários. A história do Roni e da Dolores, por exemplo, poderia ter sido muito melhor aproveitada. O João Emanuel Carneiro deu demasiada importância à história principal, e isso fez com que houvesse episódios mortos. Havia muitas personagens que deveriam ter tido mais destaque ou, pelo menos, uma evolução contínua ao longo da história.
ResponderEliminarEssa novela foi na minha opnião a melhor dos últimos tempos. Cada capítulo nos deixava intrigado pra ver outro e assim sucessivamente.
ResponderEliminarmuito boa mesmo!