Grande Reportagem é dos programas mais antigos da SIC. Como é coordená-lo?
São 15 anos. É um projecto pelo qual me bati imenso desde o início. Temos feito uma caminhada ao longo dos anos, criando várias formas de abordar os assuntos, no conteúdo e na estética, com soluções de montagem que depois vimos ser reproduzidas em outros canais, e dá-nos a satisfação de abrir esse caminho. Tem um enorme feedback do público, com sugestões e apreciações das histórias, e sente-se que nos exigem qualidade.
Quanto tempo demora a preparar uma história?
É variável, mas normalmente uma história de 30 minutos leva cerca de um mês a fazer. Obviamente quando são trabalhos de investigação demoram mais tempo, às vezes há histórias que à partida parecem simples e que depois demoram um pouco mais. É muito absorvente, durante aquele tempo está sempre presente nas nossas vidas porque temos que descobrir, investigar e filmar as histórias, produzir, visionar, estruturar, editar, não é algo que nos ocupe das 09h às 05h. Também é muito bom os prémios que temos tido a nível nacional e internacional, que é um reconhecimento de que o trabalho que temos feito vale a pena.
Há algum tema que lhe seja mais querido e ao qual gostasse de dar mais espaço no programa?
Temos, não só neste programa mas no jornalismo em Portugal, um défice de informação internacional. Aprofundamo-la pouco, e é uma das áreas que gosto de trabalhar. Mas uma GR depende muito da história. O fundamental é que seja uma boa história, aqui ou em qualquer lugar, que seja interessante, que nos traga dados novos, que nos abra horizontes, e que nos mostre mais do mundo. E isso pode ser em Portugal ou fora, é um pouco indiferente.
Há alguma história que recorde particularmente?
Há tantas! Tive um grande prazer numa reportagem que fiz há dois anos sobre miúdos orfãos de sida em Moçambique, que levou à criação de uma ONG que está a trabalhar com eles, o que é óptimo, mas há imensos colegas que têm excelentes histórias que de facto alteraram a vida das pessoas. Lembro-me de uma história da Maria Nobre, do Zethoven, um projecto de música no interior do País que tinha imensas dificuldades e que as conseguiu superar através da reportagem.
Acompanham as histórias depois da reportagem?
Fica sempre uma ligação. Quando se mergulha mais profundamente na vida das pessoas, não se fica indiferente e estabelecem-se laços, que permanecem durante anos. E as pessoas com quem fazemos um trabalho muita vezes acabam por ser vias para chegar a outras histórias.
Faz reportagem em muitos pontos do mundo. Alguma vez sentiu que era prejudicada, ou beneficiada, por vir de um país pequeno como Portugal?
Tem vantagens e inconvenientes. Somos um País pequeno, em termos internacionais não estamos na primeira linha de acesso às histórias que a BBC, CNN e Al Jazeera têm, mas trabalhamos com eles nos mesmos palcos. E muitas vezes conseguimos também boas histórias. Por outro lado, o facto de sermos um país com menor dimensão por vezes também é melhor para nós, porque internacionalmente Portugal gera simpatias, somos um País de sol, das praias, de futebol, não temos grandes inimigos. Acabamos por conseguir acesso a alguns locais por sermos olhados com alguma neutralidade e não sermos uma potência.
Na Líbia, em Março, só se moviam acompanhados dos assessores do regime. Como se faz um relato verdadeiro da realidade quando o acesso à informação é tão controlado?
Não é possível fugir da bolha. O que temos obrigação de fazer, e fiz questão disso, é dar ao espectador os elementos com os quais estamos a trabalhar, dizer-lhe que o que estamos a mostrar é uma parte da realidade que nos estava a ser mostrada pelo regime. Havia assessores que nos rodeavam e muitas vezes encenavam manifestações de apoio, mas no meio disto há factos inegáveis. Lembro-me de uma viagem que fizemos em autocarros do regime e que foi uma acção de propaganda com uma série de pessoas dando vivas ao Kadhafi, fiz questão de o dizer na reportagem, mas as tropas estavam de facto no centro da cidade. É verdade que não nos davam acesso ao resto, mas ali podíamos comprovar que, naquele momento, estava nas mãos de Kadhafi. Se tivermos a honestidade de explicar às pessoas que não estamos a dar a verdade toda, mas uma parte, que é a aquela a que estamos a ter acesso, estamos a fazer o nosso papel.
Recentemente, num dos directos, foi obrigada a proteger-se das balas. Como é lidar com esta situação?
Esse momento foi uma surpresa. Para mim e para toda a gente. Nós tinhamos consciência de que íamos para uma cidade que estava numa situação complexa, porque sempre que existem estas transições de poder há um grau de perigo elevado. Levámos coletes e capacetes porque o maior perigo em Tripoli eram os snipers, porque a cidade já estava em parte controlada pelos rebeldes. Mas sabia que havia perigo e que tínhamos que ter cuidado porque a cidade não estava totalmente controlada. Nesse dia fomos dar uma volta, saímos com os coletes, fomos ao abrigo do Kadhafi, havia imensos tiros de celebração, não tivemos nunca uma ameaça nesse percurso. Quando chegámos ao hotel estava tudo tranquilíssimo, no terraço onde íamos fazer o directo estava tudo pacífico e todos deixámos os coletes no quarto. E surge esse tiroteio. Na fase inicial, havia dúvidas do que seria: só tiros para o ar, ou para atingir o hotel? Depois percebemos que de facto estavam a tentar atingir o hotel. Mas tentei resguardar-me das balas junto a um muro e via-as bater na parede. Prolongou-se por algum tempo porque os rebeldes responderam e houve uma troca de tiros.
Nos cenários de guerra, quando se começa a atingir os jornalistas, é uma demonstração de desespero ou de poder?
Em termos de quem é que é respeitado em cenários de guerra, isso tudo mudou com o Iraque. Já não há locais seguros. Em 2003, quando foi atacada a sede da Cruz Vermelha internacional, a sede das Nações Unidas, onde morreu o Sérgio Vieira de Mello, a partir daí, não há mais locais seguros em parte nenhuma no meio dos conflitos. Se a Cruz Vermelha é atacada, acabou. Militares e civis estão na mesma circunstância e acaba a protecção para a imprensa, para ONG’s, CV, NU. Esses dois atentados marcam uma mudança radical nos cenários que existiam e passaram a existir. Temos que ter muito mais atenção e cuidado no terreno que pisamos. Na Líbia, em Março, eram os assessores de Kadhafi que controlavam os jornalistas e o controlo era efectivo, percebíamos que de facto não podíamos fazer nada para além daquilo. Ora Kadhafi é afastado e as coisas mudam 180º. E estamos em Tripoli, os rebeldes estão a defender o hotel, mas para os leais a Kadhafi, os snipers, os jornalistas andarem à vontade, falarem com toda a gente, era uma agressão. Não nos podemos esquecer que estamos a falar da mudança de um regime que tinha 42 anos. Até Agosto de 2011, era dificílimo ir à Líbia, os jornalistas ficavam no hotel sem conseguir sair. Quando há o inverso, há uma agressão para quem ainda mantém a ilusão de que Kadhafi pode voltar. Não havia um batalhão de leais para ir conquistar o [hotel] Coríntia. No outro dia ainda tentaram algumas coisas, mas não havia uma força que pudesse tomar o hotel. Acho que era para nos amedrontar, criar ansiedade, insegurança, dizendo que não nos queriam lá. Mas depois tínhamos o reverso da medalha, com a população que agradecia o facto de estarmos lá, a dar testemunho da mudança que estava a existir, e isto eram resíduos que se perderam no tempo e no espaço.
E resultou? Naquele momento, teve medo?
Tenho sempre medo. Claro, se não tiver, sou inconsciente. A questão é gerir um pouco o medo. Não sou insensível, assusto-me com os tiros, sabemos que é mesmo perigoso e que nas trocas de tiros ou celebrações há muita bala perdida que vai atingir a pessoa que menos merecia ou esperava, e isso aconteceu. Era algo que me dava um desconforto imenso, sobretudo nas manifestações. Caíram-nos algumas balas ao lado. Medo tive sempre, nesse dia e noutros. Aprendemos a desenvolver mecânismos de alerta muito sensíveis, interpretamos os sinais de forma mais apurada. Quando estava enconstada ao muro, dentro do desconforto e do medo, estava confortável porque tinha um muro atrás de mim, e só se houvesse uma arma mais pesada é que me levava dali. Estava a ver a trajectória das balas e isso é bom, é porque não são para nós. Não ter medo é de uma inconsciência total.
Preocupa-a que a sua família possa estar a assistir?
Claro que me preocupa, porque por vezes quem cá está é mais atingido ou sofre mais com alguns momentos do que nós que estamos ali. Porque medimos o perigo de outra maneira porque estamos no meio dele, mas as pessoas cá têm um embate muito forte e é preciso ligar logo para casa, dizer que está tudo bem e que já passou.
Qual foi a situação mais complicada com que se deparou?
É difícil dizer, já estive em situações complicadas no Iraque, em Angola, na Guiné Bissau, onde foi muito, muito perigoso. Foi dos países de onde tentei sair, por perceber que o perigo era demasiado próximo e demasiado real, e não consegui. Às vezes, há situações que não têm tanta importância internacional, mas são muito complicadas. Na Líbia houve um dia que estavamos perto de uma zona petrolífera e fomos surpreendidos por um ataque de morteiros das forças de Kadhafi e tivemos que fugir a sério, porque estavam a cair a 50 metros de nós.
Alguma vez sentiu a vida em risco?
Já. Há muitos momentos em que nos perguntamos o que irá acontecer a seguir e se iremos conseguir sair dali. E temos que pensar “onde é que me escondo ou como me safo?”, tendo a preocupação de ter um ponto de fuga. Curiosamente, o momento em que achei que as coisas iam mesmo acabar foi dentro de um pequeno avião, em Angola, por causa de uma tempestade descomunal, nos anos 90. E o avião acabou por cair, mas até pensei que caísse antes, porque chovia intensamente, não havia comunicações e o piloto não sabia para onde ía, o avião tremia, havia um coronel que o mandava tirar dali o avião porque era território das forças da Unita que nos podiam bombardear. E vi a minha vida a andar para trás e pensei: olha que disparate, cair aqui. Depois conseguimos descer e preparar para aterrar, e quando estavamos quase a aterrar surgiu um camião e o piloto teve que aterrar mais à frente, fez ‘aquaplaning’, e o avião foi às voltas por ali fora. Sobrevivemos com uns arranhões e muito amolgados. Mas não gosto de falar disso, porque nos acontece tanta coisa boa e má.
Tem dificuldade em ir, sabendo o que a espera?
Não. Ninguém pode ir para uma situação destas se não quiser. Tem que haver uma dose de vontade própria, porque são situações difíceis a vários níveis. Para além de ser delicado, de conflito, estamos a trabalhar com 45 graus, com coletes, sem água no hotel, com uma refeição por dia, porque não há duche nem serviço de quartos no hotel, sem electricidade... Há toda uma parte invisível que temos que aguentar. Fisicamente é puxado e psicologicamente também tem custos.
E porque é que continua a ir?
Porque há coisas que tornam tudo isto grãos de areia. Que é ver uma multidão na rua a gritar de alegria porque dizem: Eu posso falar. Uma pessoa arrepia-se ao ver a alegria das outras pessoas, partilhar com elas aqueles momentos e ser testemunha destes momentos históricos. A mudança de um regime é uma mudança histórica brutal que nunca esquecerei e é dificil às vezes transmitir o que os líbios nos quiseram transmitir. Andarmos na rua e as pessoas agradecerem por lá estarmos, pedem-nos: diga por favor que agora somos livres e já podemos falar.
É o mais importante?
O valor mais importante para mim é o da liberdade. Porque só quando não a temos, percebemos porque é que é importante. Já conheci muitas situações destas, onde as pessoas vivem sem liberdade e depois a conquistam. E esses momentos de transição são de uma intensidade, de uma beleza, que vale a pena viver, são lições de vida brutais. As pessoas têm uma esperança descomunal no país, porque estão a viver um momento único. Ser testemunha de momentos históricos é um privilégio brutal, extraordinário. Mas também é ver as coisas más. Em Tripoli, para além dos tiros e da situação de rua, que às vezes é um bocadinho duvidosa, entrar em hospitais vazios, só com mortos em cima de macas que foram ali abandonados, e ver pessoas à procura dos familiares, onde se tem que andar com máscara, é dificil. Entrar na prisão de Abul Salim, onde há uns anos houve um massacre de 1600 pessoas em duas horas porque pensavam de forma diferente de Kadhafi e ele numa tarde decidiu matá-los, saber as histórias que aquela prisão tem, de pessoas que desapareciam e que eram enfiadas ali dentro, entrar ali, tem o seu peso.
A televisão vive da imagem. Como é que se contam essas histórias, respeitando o limite da dignidade humana?
De uma forma muito simples: com respeito. Respeito pelo que estamos a ver e em quem nos está a ver. Temos que perceber a distância e mostrar de forma a que percebam a intensidade da situação, mas que não sejam imagens tão duras ou tão arrepiantes que repugnem as pessoas e elas não queiram saber o que se passou ali. O que nós estamos a ver é chocante, é terrível. Mas é perfeitamente possível encontrar esse equilíbrio, sem ser chocante de forma gratuita. Também acho que é preciso chocar as pessoas às vezes, abaná-las, mas a experiência também me diz que se formos por esse caminho as pessoas olham para o lado porque não aguentam a intensidade do que estão a ver. As pessoas têm que ficar chocadas porque a situação é chocante, mas temos que levá-las lá para dentro delicadamente.
Como é que se prepara para estes trabalhos?
Não fiz nenhum treino específico para isto, porque comecei a fazer reportagem antes de existirem esses cursos, mas acho que as pessoas o devem fazer. Mas não há heróis nestas situações. Vimos isso na Líbia, onde jornalistas altamente experimentados morreram. Não vale a pena a pessoa pensar que vai ser herói, porque não os há. Nós temos que lá ir contar as histórias que são para contar, dar testemunho de momentos históricos que se estão a passar, com maior empenhamento, honestidade e seriedade, mas não somos à prova de bala.
Nos directos da SIC e da RTP, o local era precisamente o mesmo.
Sim, era um terraço onde estavam umas quatro câmaras voltadas para o muro. Acabei o meu directo e fui fazer reportagem dentro do hotel e o colega da RTP foi para aquele local. Estavamos os dois a usar os meios da Eurovisão, que tinha satélite naquele sítio.
Várias regiões do mundo atravessam momentos de instabilidade. A informação da SIC estará nestes sítios?
Vai estando. Vamos ver, porque hoje trabalhamos com condicionalismos económicos muito mais complicados.
Esses condicionalismos levaram a que recentemente a SIC passasse por um processo de rescisões. Como é que a empresa está neste momento?
As empresas ressentem-se sempre desses processos, nenhuma empresa voluntariamente quer despedir. Quando se faz um convite à rescisão é porque há dificuldades e isso é uma forma de as colmatar. É sempre difícil ver sair pessoas, sobretudo aqueles que consideramos bons profissionais, embora alguns deles tenham ido por vontade própria para outros projectos. Mas a informação da SIC vai continuar a afirmar-se e tem possibildidade, tem todos os ingredientes e instrumentos para se afirmar como uma zona de conhecimento importante para a população portuguesa e não acho que isso esteja em perigo. A informação da SIC ainda tem muito para caminhar.
Está neste momento na SIC, mas já passou pela RTP, TSF, pelo Expresso. Podemos ve-la regressar a esses projectos?
Não sei, não digo nunca. As coisas foram acontecendo na minha vida. São três experiências muito diferentes, todas com a sua especificidade. Tenho uma enorme admiração por quem trabalha na rádio e na imprensa porque são meios diferentes. O meio onde me sinto mais à vontade, que domino melhor na parte técnica, é a televisão. Mas tenho uma boa capacidade de adaptação a qualquer circunstância e cenário, portanto não digo que não a nada. É uma questão de ver opções.
Mas no grupo Impresa?
Colaboro muitas vezes com a ‘Visão’ e o ‘Expresso’. Gosto de ter gozo no que faço, isso é importante. Vivo por projectos e desafios, gosto de me sentir motivada e motivar quem trabalha comigo e não fico sentada a olhar para o que fiz, acho que vou sempre fazer coisas ainda mais interessantes.
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